A grande impostora, a armadilha infernal, é nos acreditarmos os autores de nossas ações como egos mutáveis e distintos.
A multidão de “eus” transitórios, físicos, emocionais e mentais que ocupa as diferentes seqüências do meu destino é uma sucessão de réplicas inseparáveis do conjunto do drama. Os papéis não podem decidir ser ou não ser o que são. Resultam de encadeamento inelutável. No decorrer de um dia, posso ser, sucessivamente, motorista, pedestre, apreciador de uma boa refeição, freguês de uma loja, leitor, amante, etc. Nenhum desses desempenhos é deliberadamente escolhido como tal.
Minha existência inteira é um mosaico temporal de papéis de onde se destacam certas linhas gerais, certas figuras do conjunto. Há papéis menores, fugidíos e papéis dominantes. Há papéis secretos, camuflados, que se escondem sob uma máscara ou disfarçam sua voz - todos os personagens reprimidos e censurados pelo inconsciente.
Enquanto mantiver a ficção de que sou eu quem decide, de que sou o autor de minhas ações e o dono do jogo, estarei mantendo a ficção de um ego distinto, de uma entidade isolada, separada, dotada de consistência e realidade próprias - daí as tensões, os conflitos, o implacável mecanismo dos desejos e dos medos. Em suma, quanto mais eu me acredito livre, tanto mais sou subjugado pelos efeitos perversos da minha própria ilusão.
Aquele que está desperto (iluminado) sabe que é absurdo e insensato pretender ter livre arbítrio enquanto fenômeno individual.
Compreendendo e aceitando totalmente essa escravidão, ele atinge uma perfeita liberdade interior porque, em vez de desejar constantemente outra coisa, além, de outra maneira, deseja apenas o que é, tudo o que é.
Do seu ponto de vista, a noção de liberdade não tem um sentido fragmentário: um dedo não pode apontar para o céu se a mão pende para o chão. E devo seguir o movimento da grande mão histórica, econômica, biológica, etc. de quem sou um dos inúmeros dedos. Se endurecer , se resistir, tenho todas as possibilidades de entortar ou quebrar.
Ao contrário, desde que se revela a minha natureza essencial, desde que aparece claramente a minha identidade fundamental como o divino jogador, todo esse universo - a começar por minha própria pessoa - torna-se o Meu Jogo, um jogo maravilhosamente livre e espontâneo.
(Patrick Ravignant)
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